Nos últimos meses acho que fiz jus ao "ano novo, vida nova" que não prometi a mim própria este ano. Não prometi porque honestamente não tinha a mínima esperança de que a minha vida fosse mudar ou melhorar ou qualquer coisa do género. Na verdade esperava exactamente o contrário e nesse caso o cenário era bastante mais trágico.
Mas aqui estou eu, quase oito meses depois do início de 2019 e embora não esteja completamente mudada nem tenha ultrapassado todos os meus problemas, já posso dizer que estou diferente.
A maioria das diferenças não se vê e continuo a cair todos os dias em erros que tenho noção que devo mudar mas ao mesmo tempo eu já consigo identificá-los e saber porque é que não os devo cometer. Como já disse várias vezes isto não é fácil mas é um processo demorado e as coisas têm que ser bem feitas para não voltarem a acontecer desgraças.
Gostava de vos contar algo inspirador, a sério que gostava, só que não há milagres nem feitiços encantados que me façam ficar bem do dia para a noite.
Não vos consigo dizer o quanto quero ficar bem. O quanto quero ser uma adulta responsável e com um trabalho que me faça progredir, interesses que me inspirem e me façam continuar a viver e a levantar-me sempre que algo me mandar abaixo. Sinto que há quem não acredite em mim e que não consiga ver todos os esforços que tenho feito (e têm sido enormes) para melhorar. Gostava imenso de poder mostrar que não desisti, nem vou desistir e que o meu coração ainda acredita que daqui a uns tempos vou agradecer ter ultrapassado toda esta tempestade.
Por enquanto só me resta ir dando passinhos de bebé até um dia olhar para trás e perceber que esses passinhos se tornaram gigantes e que eu passei a ser um ser com uma mente e uma força gigante.
Tenho estado sentada à beira do abismo, com os pés a balançar devagarinho.
Os meus olhos estão fechados porque eu não preciso de ver, só preciso de sentir.
Preciso de sentir as minhas mãos no chão onde bocados de pedra se espetam lentamente sem eu dar por isso até que quando percebo já estão bem fundo da minha carne. Preciso de sentir os murros e pontapés que a vida se fartou de me dar enquanto a minha alma recupera das lesões.
Preciso de sentir a dor, o sofrimento, o ódio, a revolta, a depressão. Tenho estado sentada à beira do abismo à espera não sei de quê: se de coragem ou de controlo. Mas todos os dias me vejo ali meio perdida meio encontrada a olhar para a escuridão debaixo dos meus pés, a pensar no monstro lá em baixo.
Agora não quero ver. Sinto o meu peito a abrir e fechar conforme a minha respiração fica mais rápida ou lenta. Não quero prestar atenção às vozes que ecoam na minha cabeça. São os demónios que me querem levar, são os inimigos da minha existência. Aliciam-me com propostas indecentes de não sentir mais dor, dão-me a experimentar a doce droga da felicidade momentânea que me faz lembrar como é estar nas nuvens por uns segundos. Todos sabemos o que acontece com as drogas: toda aquela fantasia nunca é o suficiente. O efeito é curto e queremos mais e mais sem nos preocuparmos com consequências ou com o futuro. O presente é que interessa. Aquela excitação interior, a vontade de sonhar, a euforia de viver e de sentir que posso fazer tudo e que nada nem ninguém neste mundo me pode impedir de vencer.
Nisto a escuridão começa-me a puxar e eu começo a escorregar sem dar por isso. Quando abro os olhos ela pára, o efeito desaparece mas eu já estou pendurada no abismo apenas pelas mãos sem saber como vim aqui parar.
O meu corpo está mole e demasiado pesado. Dói demasiado. Respirar é complicado quando as trevas me sufocam. Não consigo gritar, não me consigo mexer, não consigo fazer nada. Porque é que eu não consigo fazer nada?!
As mãos pareciam aguentar-se mas voltam a escorregar. Eu uso todas as minhas forças para me erguer e às vezes consigo quase deitar-me de volta na beira do abismo. É temporária a sensação de segurança, de sentir que me vou libertar. Eu sei que a escuridão não me larga de maneira alguma e continua a fazer-me cheirar o doce perfume da liberdade. Só que aquilo não é liberdade.
A liberdade só resulta se eu a viver e caindo no abismo não há mais nada para mim.
O vento sopra com força fazendo-me vacilar. A tempestade vem, despeja toda a sua raiva em cima de mim e os meus dedos deslizam.
Se calhar estou a lutar contra o meu destino, se calhar estou a tentar contrariar algo que não devia, estou a tentar fugir de onde pertenço. As vozes gritam que me devo largar, que lá em baixo é maravilhoso, não vou sentir nada, só a doce liberdade.
Então largo-me.
Largo-me sabendo que tomei a decisão certa. Deito uma lágrima por quem deixo mas sorrio sabendo que a paz me espera. Será mesmo a paz? Agora já não importa, já estou a cair.
Estou quase a chegar ao fim, onde - sem eu própria saber - se encontram rochas afiadas prontas a trespassar-me. Não existe paz. Não existe nada. Já não me importa porque a minha decisão foi tomada quando me deixei cair do abismo. Volto a fechar os olhos e espero.
Só que eu nunca chego lá. Bem antes de tocar no fundo existe algo que me apanha e me leva de volta para cima. Não vejo bem ao início porque é uma luz que me ofusca tanto e eu ainda estou perdida e confusa.
Estou a voar. A minha cabeça está a andar à roda, estou meia adormecida mas sei que voo e deixo-me ser lentamente levada por uma sensação de que estou livre pensando ainda que é por me ter deixado ir. E assim adormeço.
Quando acordo estou de volta à beira do abismo. Desta vez sentada a uma certa distância dele num pequeno extracto de relva molhada e fria. É refrescante, é uma sensação diferente que me oferece conforto. Vejo ao longe o anjo que me salvou desaparecer mas sei que não me abandonou. Este caminho tem que ser feito por mim.
Eu antes não via mas sempre tive atrás de mim uma montanha com um destino diferente do outro lado. Agora vejo-a. É alta, perigosa e eu não tenho os materiais necessários para a escalar. Sinto-me uma dor no peito quando penso em escalá-la. Sei que não sou capaz.
Não, eu acho que não sou capaz. Talvez até consiga. Quem sabe se um dia não atinjo o topo.
Eu tenho começar a subi-la. É tão mas tão difícil. Quando olho para o abismo a pensar se talvez não fosse melhor deixar-me cair, vejo-o ficar rodeado de estacas de ferro aguçadas e ardentes que chegam cada vez mais perto da montanha. Não tenho outra escolha; preciso de subir. Por mim, pela minha sobrevivência.
Não tenho confiança mas tenho esperança. E a esperança é a última a morrer por isso, faço força e agarro em mais um bocado de rocha que me erga. Vou encontrando materiais que tornam o caminho menos insuportável. Vou tentando, tenho mesmo que tentar. E assim vou fazendo. Devagarinho e esperando não cair.
Ainda não subi a montanha, ainda nem vou a meio. Mas já ouço vozes lá em cima, diferentes das outras, mais suaves e dóceis. Não me prometem coisas que não podem oferecer, não me fazem acreditar na felicidade que me leva às nuvens mas garantem que nunca me vão deixar voltar a cair. São vozes amigas, vozes de pessoas que eu amo e que me amam também.
Então vou continuando a subir. Não posso ser rápida porque o caminho está cheio de buracos falsos a que me possa agarrar. É um desafio, tenho que pensar com clareza e encontrar as passagens que são melhores para mim.
De vez em quando olho lá para cima à procura do topo e não o consigo ver, só imaginar. Deve ser maravilhoso: algo que eu nunca vi, um prado tão verde cheio de relva fofinha para eu correr em liberdade e sentir que mesmo que não consiga conquistar o mundo, consigo conquistar-me a mim própria. E é só isso que me importa.
Tenho que ser eu mesma, tenho que lutar por mim, pelos meus sonhos, a minha felicidade, a minha família, os meus amigos, pelas coisas que gosto e pelas coisas em que acredito. Não é uma questão de escolher, é uma questão de fazer.
À medida que subo a montanha olho em redor e vejo outras montanhas que outras pessoas escalam com dificuldade. Algumas estão no início, outras já lá em cima mas todos estamos iguais. Todos precisamos de nos encontrar.
Vou continuar a escalar. Vou tentar não cair. Vou esforçar ao máximo por pisar as rochas certas e agarrar-me a pontos fixos.
Não prometo que consigo, isto é tão difícil, é quase impossível. Mas falta o quase e isso já é alguma coisa. Não posso prometer que consiga chegar ao topo. Estou no início do caminho e ele é tão longo que posso vir a passar a vida a fazê-lo.
Antes de voltar a escrever aqui, porque claramente ainda não estou preparada, deixem-me só dizer-vos que estou viva.
Salvaram-me a vida.
Não quero dar muitos detalhes porque sei que a minha família fica magoada e frustrada por eu deixar aquela mensagem pública mas quero dar a entender uma coisa.
A saúde mental (que não está apenas fortemente ligada à fibromialgia) é um assunto demasiado importante para ser esquecido e deixado de lado. Estamos há demasiado tempo a pôr as nossas prioridades em ordens que não devíamos e a deixar a nossa própria saúde para trás.
Eu fiz o que fiz. Não vou esconder nem vou gritar ao mundo inteiro que o fiz. E escrever aqui não conta porque convenhamos, não são muitos que o lêem.
Queria só dizer-vos que estou viva e iniciei o meu caminho para ficar bem. É uma viagem tão difícil que ainda não sei como a vou fazer mas não estou sozinha. Tenho a família e os amigos do meu lado. Tenho amor, carinho, preocupação. E apesar de continuar com ideias e pensamentos maus no meio disto tudo tenho uma ainda mais certa e ainda mais focada que todas as outras: eu vou viver.