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Cronicamente Fabulosa

Tenho fibromialgia, mas também sou fabulosa e esta é a grande aventura que é a minha vida.

Cronicamente Fabulosa

Tenho fibromialgia, mas também sou fabulosa e esta é a grande aventura que é a minha vida.

O nosso próprio inferno.

por AF, em 16.09.20

Sabem aquela sensação de estar a viver a mesma situação vezes e vezes sem conta sem poderem fazer nada, sabendo que estão constantemente a ser torturados com a dor física e psicológica que vem com toda aquela imagem? 

Há quem diga que ando a ver demasiado a série da Netflix Lúcifer mas tenho vindo a aperceber-me que por mais que eu tente mudar as coisas para o positivo, o útil é o proactivo, volto sempre ao mesmo sítio. Àquele momento inicial em que me sinto em baixo por coisas que nem sei desvendar e o meu corpo, oh se eu pudesse explicar o quanto ele me tortura. É isso que me faz sentir o inferno na terra. 

No último ano e tal, envolvi-me num objectivo de vida que seria tirar um curso de especialização tecnológica em gestão de turismo e a partir daí trabalhar em algo que me dates fizesse até poder seguir o meu sonho de psicóloga criminal. Aqui gostaria de fazer um aparte para agradecer a nada mais nada menos que à Joana Amaral Dias que reforçou esse meu sonho ao escrever no livro que tenho dela "para a minha futura colega Filipa".

Acontece que entretanto apareceu o COVID e toda aquela história sobre acabar o curso e o estágio é rapidamente arranjar um bom trabalho estável e com um ordenado decente ficou para trás. Estamos todos no mesmo barco. Todos a ficar doentes e sem dinheiro e sem sítios para nos virarmos ou um lugar onde cair mortos. Aqui diria que isto passa a ser o inferno colectivo na terra.

Na série que ando a ver, as pessoas que acabam no inferno são pessoas que sentem culpa por qualquer coisa má que fizeram e vivem essa situação repetidamente mexendo com a mente deles da forma mais macabra e demente possível. Mas que posso eu dizer, é o inferno certo?

No meu caso, eu não sinto culpa de qualquer depressão ou fibromialgia que possa ter mas continuo todos os dias a passar pelo mesmo. Não durmo e quando eventualmente adormeço só tenho pesadelos que me impedem de descansar; ando constantemente física e psicologicamente cansada porque estou a deixar de ver aquela luz ao fundo do túnel brilhar como antes; sou uma inútil. Trabalho a partir de casa de pijama, sentada na cama e a desejar cair para o lado a dormir porque tento ao máximo concentrar-me e isso drena-me toda a energia (que já é quase zero); não consigo ajudar nas tarefas domésticas como devia e aí sim sinto-me absolutamente culpada porque quando se vive em família, todos devem ajudar um bocadinho. De vez em quando lá ajudo com a roupa e ponho a mesa, tiro a louça da máquina, mas será que isso chega? Não.

Quero ser uma adulta funcional. Tenho 26 anos, porra! E sinto-me como uma adolescente de 14 que ainda está a lidar com os problemas da puberdade. Só que estes são um bocadinho diferentes.

Eu tento sair para ver se isso cura a minha incapacidade de lidar com a fibromialgia e sei que muita gente pensa que eu não sinto dores quando saio porque caso contrário não saía não é? Mas eu sinto é forço-me a ir para não ficar na rotina que é uma espiral autodestrutiva e eu sei muito bem onde essa espiral acaba porque já lá estive uma vez. Prometi a mim mesma, à minha família, aos meus amigos e aos meus médicos que não voltaria a estar lá.

Quando saio tento estar animada como a Filipa maluca que todos conhecem mas honestamente perdi a vontade de ser assim. Ultimamente não me apetece socializar ou falar com pessoas, seja pessoalmente ou pelo telemóvel. Perdi a necessidade de atenção porque para quê ter atenção quando não posso desfrutar dela? 

Estou bastante negativa, não vos vou mentir. De vez em quando tropeço e caio em poços fundos que me puxam para a escuridão e para coisas que não quero sentir mas eu tento sempre agarrar-me à pedra com as mãos. Começo a ficar cansada de ser puxada e não fazer ideia de como evitar cair.

Quando me deram alta achavam que eu estava preparada para a vida, para enfrentar os meus problemas mas nunca me deram ferramentas para enfrentar este monstro dentro de mim que não tem cura e anda agarrado às minhas costas 24 horas por dia. Se eu merecia o inferno, posso dizer que estão de parabéns porque é definitivamente a pior tortura que eu poderia aguentar.

Eu não acredito no céu nem no inferno. Nem no diabo, nem no Deus que a maioria das pessoas acredita. Por isso isto para mim é uma metáfora interessante e irónica de falar. Só que neste momento é a única forma de exprimir por palavras o que me vai na alma. 

A única forma de escapar ao meu próprio inferno e tentar encontrar um bocadinho de paz. Acho que até eu mereço isso. 

Precalços.

por AF, em 08.12.19

Achei que depois de tudo o que tinha passado já não havia volta atrás e eu estava verdadeiramente diferente. Mas estava completamente enganada.

Celebrei demasiado cedo, é o que me parece. Aprendi tudo na teoria como uma boa menina e depois na altura de pôr em prática espalhei-me ao comprido e nem sei como. E só tenho a mim própria a quem culpar.

Parece que voltei outra vez ao início e que não sei nada, não entendo nada.  Sinto-me perdida.

Mudei a minha vida. Voltei ao activo, estou a lutar por mim e pelo meu futuro mas sinto-me exausta e sinto que não sou capaz. Todos os dias acordo a pensar que vou desistir e depois páro um momento para pensar e decido que vou viver um dia de cada vez.

Tenho errado muito. Todos os dias encontro uma nova maneira de errar e sempre que me empenho em resolver os meus erros e a arranjar formas de melhorar dou por mim a errar novamente e a falhar como sempre falhei. Vocês sabem o meu percurso, vocês entendem que me esforço e que não tenho desistido em melhorar mas quem me conhece só agora e me vê a errar pensa que eu sou apenas uma pessoa imatura, mimada e que quer tudo à sua maneira.

Não culpo ninguém por pensas assim. Há coisas em mim que são irritantes. Coisas que eu faço sem me aperceber que podem fazer qualquer um revirar os olhos. "Lá está ela outra vez". E isso é completamente justificado. Eu não só não me importo como dou razão a quem o fizer porque eu sei que ainda existe tanto para mudar.

Tenho que crescer como pessoa. Tenho que perceber que eu daqui não vou sair e que para ser feliz só posso mudar. Mas há tantas coisas... existe tanto a fazer que eu sinto-me cansada. E pergunto-me muitas vezes se valerá a pena.

Não me quero fazer de vítima para ninguém porque eu só estou na situação em que estou por minha causa. Tenho duas doenças que me acompanham mas não me podem vencer porque eu tenho que lutar contra as duas e agir como uma pessoa normal. Eu gostava tanto de ser uma pessoa normal, sabem?

Daquelas que não fica triste sem razão, que não faz fitas porque não consegue controlar as suas emoções e que não tem filtro nenhum naquilo que diz. Preciso de mudar, é isso.

Mas como?

Não é tão fácil assim mudar e tornar-me uma pessoa completamente diferente quando passei 25 anos da minha vida de uma determinada forma. Já percorri um longo caminho desde que comecei esta viagem toda e sei que progredi consideravelmente mas isto não é o suficiente.

Quero que saibam que, apesar de toda esta tristeza que me faz escrever isto, é importante lutar e esforçarem-se para melhorarem as vossas vidas e saírem de quaisquer buracos em que caiam.

A tristeza faz parte da vida. A dúvida acompanha-nos sempre. É normal eu sentir-me assim mas também é importante que eu neste momento perceba exactamente porque estou assim. É isso que me fará sair do fundo do poço que não é dos mais fundos onde estive.

A vida é uma coisa muito interessante. Vamos sempre pensar se valerá ou não a pena lutar tanto e provavelmente nunca vamos saber mas se não tentarmos é que não chegaremos mesmo a lado nenhum.

Vêem: progressos.

Preconceitos.

por AF, em 02.10.19

Pela primeira vez na minha vida fui alvo de preconceito. Sempre tive sorte em não ser discriminada, sou uma mulher branca heterossexual num país relativamente desenvolvido. Acho que me safo bastante bem no que toca a preconceitos por isso não estava de todo à espera do que me aconteceu hoje.

Todos os dias utilizamos os transportes públicos para chegar onde precisamos. Eu apanho todos os dias o comboio para o mesmo destino da mesma forma que milhares de pessoas o fazem. Entro, vou para o sítio mais livre de pessoas (claustrofobia é lixada) e sento-me num lugar vago ou fico em pé à espera que alguém saia nas próximas estações. Acho que a maioria das pessoas faz isso, não é nada de especial.

Hoje ia em pé, entretida a jogar pokémon go, quando uma senhora se levantou para sair. Eu aproveitei e sentei-me porque vocês estão fartos de saber o que passo todos os dias com o meu corpo. Acordo cansada, deito-me cansada, tenho dores, o corpo pesa, etc. É normal, eu tenho fibromialgia. 

Sentei-me num lugar que não era prioritário. Sentei-me porque apanhei a oportunidade, porque queria e acima de tudo porque precisava. Só que isso não importa para nada, não é?

Como eu pareço uma pessoa perfeitamente saudável tive logo que ouvir uma troca de comentários desagradáveis de duas mulheres com idade para terem juízo. "Sinceramente", "isto realmente", algo do género as pessoas não têm a noção.

Eu respondi, com educação e a voz baixa que lá por ser nova não significa que não precise do lugar apesar de não me terem sequer deixado acabar a frase. Fui atacada como se tivesse acabado de cometer um crime atroz, mandaram-me calar, humilharam-me e mandaram-me voltar para o meu jogo como se eu fosse uma criança.

Tentei explicar à senhora, que directamente queria o lugar só porque é mais velha (apesar de também parecer saudável) que eu tinha fibromialgia e nem sei o que ia dizer mais porque a bruxa virou a cara como se eu fosse lixo e mais uma vez a outra mulher que tem mais ou menos a minha idade atacou-me. 

Eu não dei o lugar porque preciso dele. As pessoas não sabem mas eu sei. Eu tenho a doença, eu lido com ela todos os dias. Eu esforço-me 24 horas por dia para ter uma vida normal e fingir que não me dói da ponta do cabelo à ponta dos dedos dos pés.

Ninguém me defendeu porque a humanidade já se perdeu completamente. Eu era a má da fita. Num comboio cheio em hora de ponta ninguém se levantou para dar o lugar a uma pobre senhora que nem sequer pediu e eu fui a má da fita. 

Já agora, um facto interessante sobre a lei: os maiores de 65 anos só têm prioridade aos lugares se demonstrarem incapacidades físicas e/ou mentais. Isto parece irónico porque eu não apresento sinais físicos de doença mas isto é só para saberem a lei. 

Eu não cheguei e exigi um lugar. Apenas fui mais rápida, estava no meu direito. Vocês que conhecem um bocado sobre mim sabem que eu tenho sentido de solidariedade. Gosto de ajudar as pessoas. 

Hoje fizeram-me sentir pequenina, pequenina, pequenina. 

Escusado será dizer que fui a viagem toda a chorar e a soluçar em silêncio sem me conseguir controlar. Tive meia hora a chorar sem parar porque na minha cabeça não me fazia sentido ser injustiçada daquela forma quando as pessoas nem sabiam o que estavam a dizer.

Eventualmente acalmei-me (com ajuda da mamã; sou uma mimada) e preocupei-me com as aulas. O dia passou e eu já não choro mais mas é um sentimento de revolta enorme que guardo dentro de mim ao saber que para o resto da minha vida as pessoas vão olhar e achar que sou saudável quando por dentro estou a batalhar tanto para não cair.

Estou cada vez mais desiludida com o ser humano. Quanto mais conheço dele, mais gosto do meu cão.

Mas não liguem, esta gente nova é que é mal educada. 

Passinhos de bebé.

por AF, em 29.07.19

Nos últimos meses acho que fiz jus ao "ano novo, vida nova" que não prometi a mim própria este ano. Não prometi porque honestamente não tinha a mínima esperança de que a minha vida fosse mudar ou melhorar ou qualquer coisa do género. Na verdade esperava exactamente o contrário e nesse caso o cenário era bastante mais trágico.

Mas aqui estou eu, quase oito meses depois do início de 2019 e embora não esteja completamente mudada nem tenha ultrapassado todos os meus problemas, já posso dizer que estou diferente. 

A maioria das diferenças não se vê e continuo a cair todos os dias em erros que tenho noção que devo mudar mas ao mesmo tempo eu já consigo identificá-los e saber porque é que não os devo cometer. Como já disse várias vezes isto não é fácil mas é um processo demorado e as coisas têm que ser bem feitas para não voltarem a acontecer desgraças.

Gostava de vos contar algo inspirador, a sério que gostava, só que não há milagres nem feitiços encantados que me façam ficar bem do dia para a noite.

Não vos consigo dizer o quanto quero ficar bem. O quanto quero ser uma adulta responsável e com um trabalho que me faça progredir, interesses que me inspirem e me façam continuar a viver e a levantar-me sempre que algo me mandar abaixo. Sinto que há quem não acredite em mim e que não consiga ver todos os esforços que tenho feito (e têm sido enormes) para melhorar. Gostava imenso de poder mostrar que não desisti, nem vou desistir e que o meu coração ainda acredita que daqui a uns tempos vou agradecer ter ultrapassado toda esta tempestade.

Por enquanto só me resta ir dando passinhos de bebé até um dia olhar para trás e perceber que esses passinhos se tornaram gigantes e que eu passei a ser um ser com uma mente e uma força gigante.

Vamos ter esperança.

Emoções.

por AF, em 23.04.19

Sabem aquilo que nos faz funcionar todos os dias e nos distingue completamente de todos os animais existentes no planeta? Ora aí está: emoções.

O que torna este tema interessante para mim é o facto de não só me lixar porque tenho que lidar com elas para ter a vida minimamente estável como, assim que me deparo numa daquelas situações complicadas em que só me apetece explodir, as dores pioram.

Vamos fazer uma pausa para toda a gente fingir que está surpreendida. A fibromialgia tem a ver com as emoções? Que informação dramática.

Mas agora a sério, o maior problema da minha vida é sem qualquer dúvida esse. Ter que resolver problemas e não "panicar" logo de início, ficar frustrada e não bater em toda a gente, receber uma boa notícia e não sentir o êxtase que parece que andei nas drogas.... Isso tudo é importante para uma vida saudável mental e física.

Acontece que aqui a vossa amiga sabe isto tudo na teoria e depois quando chega a altura de pôr em prática... nada. Espalho-me ao comprido como se fosse um veado acabado de nascer. Ou como naquela vez que caí de cu na lama.... ou de cu em Madrid... ou de cu pelas escadas abaixo... Ora aí está uma acção representativa da minha vida.

Como eu estava a dizer eu não consigo ainda lidar com as emoções como se fosse uma adulta responsável. Sei colocar os papéis do IRS, mas resolver os meus conflitos interiores nem por isso. Que ironia.

Só que eu não sou a única e por isso é que estamos aqui. A verdade é que a grande maioria dos problemas da nossa vida (se é que não são todos) provém exactamente da nossa incapacidade de sentir uma coisa e descortiná-la da forma mais simples possível. Mas não, nós como somos pessoas super inteligentes pegamos nessa dita coisa, damos-lhe cinquenta voltas para ficar emaranhada como um novelo, damos-lhe uns suplementos alimentares para ela crescer e ensinamo-la a ser teimosa e quando damos por nós onde é que aquilo já vai. E como ela, fazemos o mesmo a tantas outras que sentimos.

Se vos disser que a minha médica hoje me disse que eu tenho feito um enorme trabalho no hospital a tratar de mim própria provavelmente não acreditariam. E é tudo muito bonito: eu chego lá, falo dos meus problemas, começo a ver soluções, começo a fazer planos de vida e quero é andar para a frente. Parece espectacular até ao momento em que acordo um dia e me sinto na verdadeira merda.

O que é que aconteceu? Porque é que eu estava tão bem e agora sinto que nada nesta vida faz sentido? Se vos conseguisse responder a isto claramente não estava lá no hospital. Já tinha tido alta e um certificado de honra de psiquiatria. Só que não.

As emoções fazem de nós quem somos. Não esperem, não é isto que eu quero dizer. As emoções fazem-nos mostrar quem as outras pessoas acham que somos no nosso dia-a-dia porque se não as conseguirmos controlar vamos obviamente parecer alguém que nem sequer reconhecemos no espelho. Elas fazem-me ser agressiva e implicativa, fazem-me criticar tudo e todos à minha volta, fazem-me não aceitar ser contrariada, fazem-me chorar demasiado e estar a rir feliz no momento a seguir. Às vezes não entendo como é que as pessoas ainda não me colocaram oficialmente o autocolante na testa a dizer "maluca" mas deve estar quase.

Também me fazem ser má para as pessoas que gosto e descarregar a minha revolta acumulada em quem não merece. E isso faz ricochete e acerta-me como um soco no estômago quando percebo que estou a errar e não me consigo controlar. Eu consigo, só que ainda não sei como.

Neste frenesim de sentimentos e acções tresloucadas o meu corpo decide-se juntar à festa e começa uma dor ali, outra dor aqui até que quando dou por mim já não me mexo. É profundamente ridículo e enervante porque eu não quero aceitar que isto seja só uma coisa da minha cabeça e que a culpa é minha mas cada vez que me enervo sinto dores como se me estivesse a castigar a mim própria por efectivamente ser humana.

Isto não é bom como é óbvio porque como devem calcular eu passo o dia numa montanha russa de sentimentos, emoções, estados de espírito e tudo o que signifique que não estou boa da cabeça. Quando chego ao fim do dia estou tão cansada que nem consigo ouvir a minha própria voz da consciência a pensar em qualquer coisa. Pior ainda é que quando durmo não consigo descansar e no dia a seguir recomeça esta aventura toda.

Por isso, na teoria a questão é muito simples: é preciso saber lidar com as emoções. Até aí tudo bem.

O resto? Bom, para isso desejem-me sorte!

Mudar de vida.

por AF, em 19.01.19

Todos os anos ouvimos as pessoas dizerem aquela frase feita de "ano novo, vida nova". Todos os anos reviramos os olhos ao percebermos que o ano não representa necessariamente uma reviravolta na vida de cada um, é apenas um trocar de calendário.

Assim que bateu a meia noite, dei por mim em 2019 sem a mínima ideia de como seria a minha vida dali para a frente. O meu coração gritava que queria mudar e a minha cabeça achava que era tudo tretas. E poderia mesmo ter sido.

Mas lembram-se de eu vos dizer que não ia desistir?

Há cerca de duas semanas comecei, talvez, a viagem mais importante da minha vida. Não era uma viagem física em que partiria de mochila às costas e ia visitar outro país. Desta vez, parti de mente aberta e vim descobrir-me a mim própria.

Aquilo que sempre me impediu de avançar e de ser a pessoa que eu realmente queria ser era, antes de mais, eu não saber quem queria ser. Não fazia ideia do que representava ser a "Filipa" nem para que propósito servia a minha própria existência. Não se deixem enganar pelas minhas palavras, eu ainda hoje não sei de todo aquilo que me traz ao mundo ou o que quero viver.

Só que no meio disto tudo aprendi uma coisa: eu ainda não sei, mas vou saber.

Entrei para um tipo de tratamento que representa uma oportunidade única na vida de uma pessoa com problemas psicológicos. Passo os meus dias fechada numa unidade de um hospital que me trata bem e me estimula como se eu fosse uma criança a aprender a dar os primeiros passos. Logo aqui estou a imaginar muitos de vocês a lerem isto e a pensarem "onde raio é que te foste meter?" e até podem ter a vossa razão porque visto de fora parece que só estou a brincar num sítio onde somos todos malucos.

Apercebi-me de que se queremos mudar seriamente quem somos e revolucionar a nossa perspectiva de ver a vida precisamos de regredir completamente e voltar a formular a nossa personalidade como se tivéssemos quatro/cinco anos outra vez. No meio disto tudo, como somos todos adultos é óbvio que nos vamos portar como tal e ser desafiados num grau maior que um pequeno ser humano seria. Fazem-nos perguntas difíceis, confrontam-nos com o significado das nossas próprias palavras e na maioria das vezes em que nos encontramos cara a cara com os nossos pensamentos acabamos por notar que afinal o mundo não é todo preto nem todo branco.

E aí começamos a colori-lo.

Soltamo-nos com actividades que nos fazem rir pelas nossas figuras de parvos. Aceitamos que não são "figuras de parvos" mas processos necessários para que nos possamos sentir bem com a pessoa que somos e aceitar que toda a gente neste mundo se preocupa mais com a imagem que mostra para os outros do que realmente em julgar quem está à volta. Existem 7 biliões de pessoas no mundo, é completamente impossível que todos pensem desta forma simpática e madura mas levamos daqui a lição importante de que não só não podemos mudar quem está errado como devemos aceitar que essas pessoas não representam nada na nossa vida.

Eu disse-vos que ia escalar uma montanha ainda antes de saber que tipo de montanha era. Sempre soube que o caminho era difícil e não é agora que vos venho dizer que afinal é muito fácil e é tudo lindo e maravilhoso. Tenho dias em que sou confrontada com realidades que me lembram das minhas próprias experiências e acertam-me como um soco tão forte no estômago que quase perco o ar. Só que isso é completamente necessário.

Na vida precisamos de experienciar felicidade, tristeza, revolta, compaixão. Tudo de bom e tudo de mau num equilíbrio que faz de nós quem somos, que faz de nós humanos. Precisamos de aceitar que os sentimentos são para ser sentidos porque se os escondermos no fundo de uma caixa que está guardada lá em cima do armário então um dia mais tarde quando abrirmos a caixa ela vai dar cabo de nós. E aí, o que fazemos?

Por isso sim, este ano comecei sem pensar que seria "ano novo, vida nova" mas comecei a mudar a minha vida um degrau de cada vez. À medida que vou escalando vou aprender tanto sobre mim que quando acabar nem vocês me vão reconhecer.

Mas não se vão embora porque eu vou andar por aqui sempre a partilhar a minha história convosco. E qualquer dia pode ser que deixe de ser cronicamente fabulosa e passe a ser só fabulosa.

Quem sabe.

Montanhas e abismos.

por AF, em 27.11.18

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Tenho estado sentada à beira do abismo, com os pés a balançar devagarinho.

Os meus olhos estão fechados porque eu não preciso de ver, só preciso de sentir.

Preciso de sentir as minhas mãos no chão onde bocados de pedra se espetam lentamente sem eu dar por isso até que quando percebo já estão bem fundo da minha carne. Preciso de sentir os murros e pontapés que a vida se fartou de me dar enquanto a minha alma recupera das lesões.

Preciso de sentir a dor, o sofrimento, o ódio, a revolta, a depressão. Tenho estado sentada à beira do abismo à espera não sei de quê: se de coragem ou de controlo. Mas todos os dias me vejo ali meio perdida meio encontrada a olhar para a escuridão debaixo dos meus pés, a pensar no monstro lá em baixo.

Agora não quero ver. Sinto o meu peito a abrir e fechar conforme a minha respiração fica mais rápida ou lenta. Não quero prestar atenção às vozes que ecoam na minha cabeça. São os demónios que me querem levar, são os inimigos da minha existência. Aliciam-me com propostas indecentes de não sentir mais dor, dão-me a experimentar a doce droga da felicidade momentânea que me faz lembrar como é estar nas nuvens por uns segundos. Todos sabemos o que acontece com as drogas: toda aquela fantasia nunca é o suficiente. O efeito é curto e queremos mais e mais sem nos preocuparmos com consequências ou com o futuro. O presente é que interessa. Aquela excitação interior, a vontade de sonhar, a euforia de viver e de sentir que posso fazer tudo e que nada nem ninguém neste mundo me pode impedir de vencer.

Nisto a escuridão começa-me a puxar e eu começo a escorregar sem dar por isso. Quando abro os olhos ela pára, o efeito desaparece mas eu já estou pendurada no abismo apenas pelas mãos sem saber como vim aqui parar.

O meu corpo está mole e demasiado pesado. Dói demasiado. Respirar é complicado quando as trevas me sufocam. Não consigo gritar, não me consigo mexer, não consigo fazer nada. Porque é que eu não consigo fazer nada?!

As mãos pareciam aguentar-se mas voltam a escorregar. Eu uso todas as minhas forças para me erguer e às vezes consigo quase deitar-me de volta na beira do abismo. É temporária a sensação de segurança, de sentir que me vou libertar. Eu sei que a escuridão não me larga de maneira alguma e continua a fazer-me cheirar o doce perfume da liberdade. Só que aquilo não é liberdade.

A liberdade só resulta se eu a viver e caindo no abismo não há mais nada para mim.

O vento sopra com força fazendo-me vacilar. A tempestade vem, despeja toda a sua raiva em cima de mim e os meus dedos deslizam.

Se calhar estou a lutar contra o meu destino, se calhar estou a tentar contrariar algo que não devia, estou a tentar fugir de onde pertenço. As vozes gritam que me devo largar, que lá em baixo é maravilhoso, não vou sentir nada, só a doce liberdade.

Então largo-me.

Largo-me sabendo que tomei a decisão certa. Deito uma lágrima por quem deixo mas sorrio sabendo que a paz me espera. Será mesmo a paz? Agora já não importa, já estou a cair.

Estou quase a chegar ao fim, onde - sem eu própria saber - se encontram rochas afiadas prontas a trespassar-me. Não existe paz. Não existe nada. Já não me importa porque a minha decisão foi tomada quando me deixei cair do abismo. Volto a fechar os olhos e espero.

Só que eu nunca chego lá. Bem antes de tocar no fundo existe algo que me apanha e me leva de volta para cima. Não vejo bem ao início porque é uma luz que me ofusca tanto e eu ainda estou perdida e confusa.

Estou a voar. A minha cabeça está a andar à roda, estou meia adormecida mas sei que voo e deixo-me ser lentamente levada por uma sensação de que estou livre pensando ainda que é por me ter deixado ir. E assim adormeço.

Quando acordo estou de volta à beira do abismo. Desta vez sentada a uma certa distância dele num pequeno extracto de relva molhada e fria. É refrescante, é uma sensação diferente que me oferece conforto. Vejo ao longe o anjo que me salvou desaparecer mas sei que não me abandonou. Este caminho tem que ser feito por mim.

Eu antes não via mas sempre tive atrás de mim uma montanha com um destino diferente do outro lado. Agora vejo-a. É alta, perigosa e eu não tenho os materiais necessários para a escalar. Sinto-me uma dor no peito quando penso em escalá-la. Sei que não sou capaz.

Não, eu acho que não sou capaz. Talvez até consiga. Quem sabe se um dia não atinjo o topo.

Eu tenho começar a subi-la. É tão mas tão difícil. Quando olho para o abismo a pensar se talvez não fosse melhor deixar-me cair, vejo-o ficar rodeado de estacas de ferro aguçadas e ardentes que chegam cada vez mais perto da montanha. Não tenho outra escolha; preciso de subir. Por mim, pela minha sobrevivência.

Não tenho confiança mas tenho esperança. E a esperança é a última a morrer por isso, faço força e agarro em mais um bocado de rocha que me erga. Vou encontrando materiais que tornam o caminho menos insuportável. Vou tentando, tenho mesmo que tentar. E assim vou fazendo. Devagarinho e esperando não cair.

Ainda não subi a montanha, ainda nem vou a meio. Mas já ouço vozes lá em cima, diferentes das outras, mais suaves e dóceis. Não me prometem coisas que não podem oferecer, não me fazem acreditar na felicidade que me leva às nuvens mas garantem que nunca me vão deixar voltar a cair. São vozes amigas, vozes de pessoas que eu amo e que me amam também.

Então vou continuando a subir. Não posso ser rápida porque o caminho está cheio de buracos falsos a que me possa agarrar. É um desafio, tenho que pensar com clareza e encontrar as passagens que são melhores para mim.

De vez em quando olho lá para cima à procura do topo e não o consigo ver, só imaginar. Deve ser maravilhoso: algo que eu nunca vi, um prado tão verde cheio de relva fofinha para eu correr em liberdade e sentir que mesmo que não consiga conquistar o mundo, consigo conquistar-me a mim própria. E é só isso que me importa.

Tenho que ser eu mesma, tenho que lutar por mim, pelos meus sonhos, a minha felicidade, a minha família, os meus amigos, pelas coisas que gosto e pelas coisas em que acredito. Não é uma questão de escolher, é uma questão de fazer.

À medida que subo a montanha olho em redor e vejo outras montanhas que outras pessoas escalam com dificuldade. Algumas estão no início, outras já lá em cima mas todos estamos iguais. Todos precisamos de nos encontrar.

Vou continuar a escalar. Vou tentar não cair. Vou esforçar ao máximo por pisar as rochas certas e agarrar-me a pontos fixos.

Não prometo que consigo, isto é tão difícil, é quase impossível. Mas falta o quase e isso já é alguma coisa. Não posso prometer que consiga chegar ao topo. Estou no início do caminho e ele é tão longo que posso vir a passar a vida a fazê-lo.

Mas uma coisa prometo: eu vou tentar.

E acima de tudo, eu não vou desistir. Nunca mais.

SNS no seu melhor.

por AF, em 17.11.18

Deixem-me contar-vos uma pequena história que me aconteceu no início desta semana.

Nós vivemos num país onde existe um sistema nacional de saúde (e ainda bem) que tem como objectivo proteger e apoiar o cidadão em todas as questões relacionadas com o nosso bem-estar físico e também emocional. Dito isto é-me igualmente importante referir as inúmeras campanhas em cartazes ou mesmo na televisão que ao longo dos anos nos foram garantindo que nos ajudariam em caso de alguma necessidade mental como a depressão. Ligaríamos um número, procuraríamos um médico, seríamos sempre ajudados e encaminhados para o sítio certo.

Ok, até aqui tudo bem.

Vamos então ver isto na prática.

Não me vou pôr com falinhas mansas e mentir-vos nem vou apagar as antigas publicações que dizem explicitamente o que se passou comigo. Foi uma realidade que acontece a muitas pessoas e apesar de certas pessoas importantes na minha vida considerarem completamente desnecessário andar a contar às pessoas quero deixar claro que não vou usar a minha história de forma a expor a minha vida só porque sim. Só porque "coitadinha da Filipa, que é tão boa menina e não merece isto". Não são esses comentários que ajudam e com todo o respeito não me interessa minimamente se estão a falar de mim por A, B ou C. Foi essa a decisão que tomei há duas semanas atrás.

Na mesma altura em que emborcava quase duzentos comprimidos e decidia acabar com a minha vida. Pois, é isso mesmo. Para quem até então não sabia: eu, a fabulosa escritora de um blog sobre uma doença chata que não interessa nem ao menino jesus, decidiu pôr fim a tudo. Claramente foi um plano mal pensado porque não estaria aqui se fosse o contrário.

A questão aqui é explicar-vos o que está errado com o nosso sistema de saúde, neste preciso momento.

Eu raramente tive queixas em relação a isto. Mentira, eu estou sempre a queixar-me em relação a tudo. E quando digo tudo é TUDO. Às vezes pareço as velhas, socorro. Mas prosseguindo, eu nunca me irritei mesmo ao ponto de ficar tão revoltada e perder toda a credibilidade na nossa saúde pública até esta semana.

Ok, esperar meses por consultas. Ok, esperar horas nas urgências cheia de dores. Ok, ver que os médicos, enfermeiros e auxiliares muitas vezes estão a brincar para aliviar o ambiente ou a discutir quem vai dormir primeiro antes de nos ajudarem. Ok, acharem que estou a fazer um autêntico drama e dizerem que não tenho nada durante dois anos até finalmente considerarem importante dizerem-me que tenho fibromialgia. Que choque. Esperem, lembrei-me de uma última: OK, a minha própria psiquiatra dizer-me na minha cara que não me pode ajudar em questões importantes porque não é esse o trabalho dela e passar logo a seguir ao momento da consulta em que me faz um plano esquematizado e exagerado sobre os medicamentos que tenho que tomar para manter a minha cabeça calma e manter-me uma pessoa minimamente normal e activa na sociedade.

Eu até desculpei isso tudo. E até dei valor aos médicos, enfermeiros e auxiliares que me trataram e me ajudaram imenso enquanto estive três dias internada no hospital depois deste episódio todo. Achei que afinal as greves deles não eram assim tanta frescura pela quantidade de trabalho e de parvoíces que têm que aturar todos os dias. Achei que estava a ser um fardo enorme para eles e tentei dar o mínimo de trabalho possível e agradecer sempre que eles me ajudavam ou me ajustavam os tubos, eléctrodos, e todas essas porcarias que estavam ligadas a mim. Por momentos dei-lhes razão. E não quer dizer que hoje não dê e parte de mim não os apoie mas isso é uma questão para outro dia ou para outro contexto que realmente não me apetece abordar publicamente.

O que importa aqui é que eu sempre os respeitei e que lhes dei imenso valor quando lá estive.

Os médicos psiquiatras ajudaram-me. Disseram-me que era imperativo que a minha consulta fosse antecipada e que eu começasse uma terapia que não me ajudaria só com a minha depressão mas também com a fibromialgia. Falaram-me de coisas que poderia fazer para me ajudar a não me sentir tão mal e eu realmente senti que eles não me estavam a julgar mas a tentar ajudar-me. Então, apesar de claramente deprimida e ainda sem qualquer vontade de viver, saí do hospital com a esperança de que se tivesse a ajuda que eles me tinham prometido talvez o meu desejo de ter uma vida longa e próspera voltasse.

Lembram-se da lei de Murphy? Como é óbvio, quando algo pode correr mal vai correr mal. E todos sabemos que Murphy é o meu nome do meio. E se não era, estou oficialmente a adoptá-lo já que ela se aplica a praticamente tudo na minha vida.

Quando finalmente me senti fisicamente capaz de ir ao centro de psiquiatria, que pertence ao hospital onde estive internada, fazer de pombo correio e passar-lhes todas as informações que os psiquiatras me tinham dito... Foi aí que dizendo da forma mais directa: a porra ficou séria.

"Mas já tem consulta marcada para Janeiro". Disse-me a secretária que eu claramente não odeio por ela ser empertigada, insensível e ocasionalmente mal educada para os utentes.

"Sim, mas os médicos no hospital pediram que a consulta fosse antecipada por causa das razões que estão aí no papel". O papel era a minha alta hospitalar que dizia quase como que escrito para uma criança o que é que eu tinha feito.

"Mas as consultas estão cheias e já tem a consulta marcada em Janeiro".

"Como deve calcular, eu tentei suicidar-me há uma semana e meia e posso já não estar cá em Janeiro."

"Pois."

"Pois." Aqui é a parte em que eu respiro fundo e me lembro que a minha mãe me ensinou a ser uma menina educada e a não tratar mal as pessoas quando estou irritada mesmo que a dita pessoa seja uma completa anormal. "Por isso é que preciso da consulta. No hospital disseram-me isso. E também preciso de começar a terapia da psicomotrocidade porque eles acham que é muito importante para me ajudarem."

"Pois mas isso tem que ser autorizado pela médica". Não me lembro de certas palavras pelo meio mas ela lá se levantou para ir falar com a maravilhosa doutora nova que me foi atribuída já que a minha antiga psiquiatra desapareceu do mapa e decidiu não dar a mínima para os pacientes dela. Se calhar se tivesse dado e me ajudado como devia eu não estava neste estado. Mas não vamos atribuir culpas. Se a culpa disto é de alguém, esse alguém sou eu.

Enfim, ela foi.  Ouvi entretanto umas médicas ou enfermeiras a rirem-se lá dentro enquanto os pacientes esperavam cá fora com ar de quem estava a morrer e nisto tudo tinham um obviamente maluco a avisar toda a gente que estávamos quase no Natal, porque isso é super importante no início de Novembro.

E entretanto voltou.

"Falei com a doutora mas ela diz que não há vagas para consultas. Tem que vir cá em Janeiro quando tiver consulta marcara." Eu fiquei um momento calada. A olhar para ela e a tentar assimilar que eu tinha acabado de ser rejeitada por uma psiquiatra que tem obrigação de ajudar as pessoas principalmente quando elas estão em risco.

Não me levem a mal. Eu não quero passar à frente das consultas dos outros só porque sim. Todos temos os nossos demónios a combater, todos eles são diferentes e nenhum é pior que o outro.

Mas eu tentei matar-me.

E o facto de ter sobrevivido não faz de mim uma pessoa automaticamente feliz que decidiu que afinal a vida merece ser vivida e que temos todos que dar graças a deus por estarmos vivos. Eu fiz o que tinha a fazer porque assim o sentia e não foram três dias no hospital, em que passei 80% do tempo a dormir completamente drogada, que me fizeram mudar de ideias.

"A senhora não tem a culpa". Disse eu a tentar ser simpática enquanto lhe chamava todos os nomes possíveis e imagináveis na minha cabeça e me aguentava ao máximo para não lhe arrancar aquela cara de cu à força. É que sinceramente, toda aquela indiferença, insensibilidade e pose de "temos pena" irritaria um santo. Continuando: "Mas você tem a noção que me tentei matar? E eu estou aqui porque preciso urgentemente de uma consulta porque eu não sei se não o farei outra vez."

"Mas nós não somos um serviço de urgência, quando isso acontecer tem de se dirigir às urgências." Filha, de onde é que tu achas que eu vim?

"Você sabe o que me fazem nas urgências? Dão-me uma injecção para me acalmar e me porem a dormir e depois mandam-me embora sem fazer nada e dizem para vir aqui."

"Pois".

Mais uma vez, já a deitar aqueles 'pois' pelos ouvidos: "A senhora não tem a culpa mas o que é que é preciso eu fazer para ter ajuda? Vir aqui morta, enterrada, dentro do caixão???"

Depois de ouvir o que tinha dito é que percebi que era impossível ir enterrada para lá, mas ela percebeu a ideia porque ficou calada a olhar para mim muito séria antes de soltar um "Pois." Maldito pois, maldita secretária, maldita médica, malditos eles todos.

"Pois". Foi a minha resposta. Agradeci não sei porquê já que eles não me ajudaram em coisíssima nenhuma e saí derrotada do centro de psiquiatria acessível a todas as pessoas que estão inseridas no sistema nacional de saúde que promete ajudar, proteger e apoiar quem mais precisa.

Se chorei? Chorei. Não tenho vergonha nenhuma de dizer que chorei e me senti sufocada naquele momento como se mais uma vez o mundo me caísse em cima e me esmagasse o peito.

Ali estava eu, finalmente a procurar a ajuda que toda a gente dizia que eu precisava, para ser simplesmente ignorada por uma médica que nunca me viu, para ser despachada por uma secretária que odeia o que faz e só vê dinheiro à frente e para ser completamente lixada pelo estado.

Sabem o que tenho que fazer? Tenho que ir para o privado onde certas consultas chegam a custar 60€ (se não encontrarmos melhor) e numa sessão de 60 minutos em que dizes que precisas de falar muito disto porque precisas de ajuda eles acabam por te responder "Isso fica para a próxima sessão sim?" Só para poderem ganhar mais 60€ e eu ficar cada vez mais pobre enquanto tento ficar sã.

Resumindo e concluindo pessoal: ou somos malucos e aceitamos ou morremos e depois toda a gente diz que não merecíamos e que tudo teria sido diferente se tivéssemos procurado ajuda.

E depois a maluca sou eu? Está certo.

Eu estou aqui.

por AF, em 09.11.18

Antes de voltar a escrever aqui, porque claramente ainda não estou preparada, deixem-me só dizer-vos que estou viva.

Salvaram-me a vida.

Não quero dar muitos detalhes porque sei que a minha família fica magoada e frustrada por eu deixar aquela mensagem pública mas quero dar a entender uma coisa.

A saúde mental (que não está apenas fortemente ligada à fibromialgia) é um assunto demasiado importante para ser esquecido e deixado de lado. Estamos há demasiado tempo a pôr as nossas prioridades em ordens que não devíamos e a deixar a nossa própria saúde para trás.

Eu fiz o que fiz. Não vou esconder nem vou gritar ao mundo inteiro que o fiz. E escrever aqui não conta porque convenhamos, não são muitos que o lêem.

Queria só dizer-vos que estou viva e iniciei o meu caminho para ficar bem. É uma viagem tão difícil que ainda não sei como a vou fazer mas não estou sozinha. Tenho a família e os amigos do meu lado. Tenho amor, carinho, preocupação. E apesar de continuar com ideias e pensamentos maus no meio disto tudo tenho uma ainda mais certa e ainda mais focada que todas as outras: eu vou viver.

E esse é o primeiro passo que vou dar.

Para a minha irmã.

por AF, em 10.10.18

 

Querida irmã,

Hoje escrevo só para ti. Escrevo porque há tantas coisas que te quero dizer mas não sei como porque não te quero deixar triste nem preocupada. Mas hoje também escrevo com amor.

Nunca me vou esquecer do primeiro momento em que te vi e jurei para mim mesma que te ia proteger para sempre com todas as forças no meu ser. Lembro-me de ver uma bebé tão pequenina, tão frágil que tinha chegado a este mundo tão cinzento e cruel. E aí soube. Tu eras minha e eu era tua para todo o sempre. E ai de quem se atrevesse a fazer mal à minha menina!

Hoje nada mudou. Continuo a amar-te com todas as fibras existentes no meu corpo. Tenho o maior orgulho do mundo na menina que te tornaste e na mulher que ainda vais ser. És o meu sol, és verdadeiramente a pessoa mais importante da minha vida. E eu sou a tua irmã mais velha. É aqui que está o problema.

Eu devia ser o teu modelo, alguém que olhasses e pudesses pensar "é igual a ela que eu quero ser". Devia levar-te a passear a todo o lado e fazer todo o tipo de brincadeiras contigo que enchessem essa tua cabecinha de boas memórias para o futuro. Devia inspirar-te a gostares de ti própria e a teres uma confiança indestrutível que te dessem vontade de conquistar o mundo. Eu devia ser uma boa irmã.

Só que em vez disso passo muitas tardes a dormir quando me pedes a brincar, não tenho cabeça ou energia para jogar aqueles jogos que nós gostamos tanto de jogar e a minha cabeça já não é boa o suficiente para te ajudar com os trabalhos na escola. Quando te devia dar bons exemplos e fortalecer o teu espírito para seres uma menina emocionalmente forte, deixo-te ver os meus maus momentos quando estou quase a cair no abismo. Mostro-te que existe um lado mau no nosso ser que pode levar à auto-destruição. E depois vejo isso reflectir-se em ti.

Perdoa-me.

Neste momento e com todo o meu coração peço-te que me perdoes.

Não vais ler isto hoje, nem amanhã e provavelmente vão passar muitos anos até eu mencionar casualmente numa conversa que um dia escrevi no meu blog sobre ti. Só aí é que vais perceber que se eu pudesse tinha mudado tudo. Tinha-te dado excelentes memórias de infância. Tinha-te levado a todo o lado, tinha passado tantas novas experiências contigo, tinha-te ensinado a seres uma super menina que seria eventualmente uma super mulher.

Quando fores uma super mulher vais perceber que tiveste uma espécie de vilã como irmã.

Mas não fiques chateada comigo. Lembra-te que te amo e que às vezes as coisas atacam-nos de tal forma que nos tornam nos monstros contra os quais lutamos diariamente. Lembra-te que és e serás sempre o sol da minha vida. A minha princesa.

Quando fores uma super mulher vais perceber que não fiz por mal.

Eu tentei e tento. Eu juro que tento todos os dias que me pedes para brincar ou que me vens contar uma história engraçada. Desculpa quando não brinco, quando não te ajudo com isto ou aquilo ou quando não presto tanta atenção às histórias que me contas. Mas mesmo quando parece que não quero saber, eu quero. E lembro-me das tuas paixões secretas, das tuas melhores amigas na escola e da palhaçada que fizeram naquele dia no meio da aula.

Quando fores uma super mulher vais-te lembrar dos momentos em que viste em mim o pior.

E eu peço-te tanto perdão aqui. É o meu maior arrependimento. Nunca quis que visses os meus demónios. Nunca quis que ouvisses as coisas más que dizia sobre mim própria ou que queria fazer. Queria que continuasses inocente. Que não soubesses que era possível uma pessoa odiar-se e achar que era uma nulidade na vida. Nessa altura não entenderias se te explicasse mas é tudo causa de uma doença. Uma doença estranha que nos afecta psicologicamente e nos faz pensar coisas más que quase parecem pesadelos.

Quando fores uma super mulher vais entender.

Vais perceber que apesar das depressões e da fibromialgia, eu nunca deixei de te amar. Vais perceber que elas me condicionaram a vida e que eu fui fraca ao não conseguir lutar e ficar acima delas. Vais perceber que por muito que se tente, nem sempre somos bem sucedidos. Mas não faz mal. Quando entenderes isso tudo eu vou estar cá para te dar um abraço e dizer que te amo.

E vou tentar. Prometo que vou tentar ser uma boa irmã para ti e ajudar-te a venceres na vida. E quando parecer que tudo está errado e nada pode melhorar, eu vou estar cá para te dar a mão, ajudar-te a levantar e motivar-te para continuares porque é isso que as irmãs fazem.

Tu hoje és uma super menina, mas prepara-te... no futuro vais ser uma super mulher.

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